terça-feira, 15 de julho de 2008

Saudade


Cai a noite…

Espreito sobre o ombro as passadas marcadas no asfalto.

A borracha derretida forma negras sombras espalhadas pelo chão. Manchas de Rorschach impressas nos passos estampados no pavimento, que insistem em tentar entender. Enigmas desconhecidos indecifráveis à simples curiosidade oca de castas mentes vãs.

Desliza o asfalto… lençol de seda soprado pela brisa nocturna arqueando movimentos frugais de meiguice e lenidade. Descobrem-se os tesouros escondidos de risos boémios e gargalhadas levianas.

Espreita o arauto taciturno pela brecha da porta entreaberta, arrastado pelo brilho espartano de uma lua rubicunda, suspensa somente pelos longos cabelos de um deus que não existe. Empenha o pergaminho hospedeiro de mensagens mudas que outrora tiveram nexo. Letras embaralhadas numa casta folha de papel. O que era um testamento é agora a sopa de letras de um paciente terminal, passatempo de quem aguarda as horas da morte.

Ao luar…

Raios mordazes cobrem as ruas de um inusitado índigo que hipnotiza as mais inocentes almas. Caiem pingas de lágrimas ácidas choradas pela mãe quando viu seu filho, ainda imberbe, a partir para a guerra.

Uivos aterrorizantes fogem das entranhas do pai que fugiu de mão dada com o desprezo e o esquecimento, na esperança de um dia voltar para um novo e utópico começo. Miragem demente de um indigente que condena a história a repetir-se.

Pela noite dentro…

Memórias despidas ao luar, bailam em torno de fogueiras ao ritmo de paradigmas de sacrilégio. Prelúdio lascivo que ecoa pelas madrugadas oníricas que anunciam o fim de uma noite de sonhos e fantasias, sem principio nem fim.

Passam tempos e egos em exposição nas vitrinas nas ruas estreitas de calçadas gastas, escorregadias, armadilhas eruditas para saltos altos e solas corroídas. Ruelas íngremes que avistam os candeeiros pendurados nas esquinas virados a oeste.

Madrugada…

Cabisbaixos e de olhos fixos no solo, os mendigos fazem vénias respeitosas ao poente da miséria evitando assim o encadeamento de um céu dourado iluminado por um sol que já não brilha.

Lá em baixo, o manto pálido toca o mar. Suave toque o da areia que cobre os pés a cada passo e escorrega por entre os dedos como carícias. Afirmam-se as pegadas por momentos apenas para serem roubadas pelas ondas rítmicas da água salgada.


Do alto da falésia já nem o farol roda…

Flutua um bote , ao longe , sem âncora nem amarras . Notam-se a custo as letras gastas cravadas na lateral : “A gaveta do fundo”.

Mergulho de cabeça mar a dentro, a nadar contra a maré, furando as ondas quase em apneia. Descanso deitado na madeira frágil do bote. Envolto no teu pranto que me aconchega deixo-me ir à deriva, guiado apenas pelos ventos de paixão.



by Moon_T

7 comentários:

Cristina Costa disse...

Lembrou-me isto:

http://www.youtube.com/watch?v=1j2m0BbLpWc

"Come in my boat
a storm is rising
and the night is coming
Where do you want to go
(quite alone you are drifting away),
give it up
Who will hold your hand
when it
pulls you under

Where do you want you want to go
So boundless,
the cold sea
Come in my boat,
The wind of autumn
keeps the sails stiff

Now you are standing by the lantern
with tears in your face
The daylight falls to the side
The autumn wind sweeps empty the streets

Now you are standing by the lantern
with tears in your face
The evening light chases the shadows away
Time stands still and fall is coming

Come in my boat
Yearning becomes
the helmsmen
Come in my boat
the best sailor
was I

Now you are standing by the lantern
with tears in your face
You take the fire from the candle
Time stands still and fall is coming

They only spoke of your mother
so merciless is only the night
In the end I'm left alone
The time stands still
and I am cold"

Blueminerva disse...

Era capaz de ler-te durante toda a noite... fantástico.
Um grande abraço

Vitória disse...

Realmente fantástico.
Tens uma jeito e escrever que se sente.
Gostei;)

Op.Louca disse...

( …Envolto no teu pranto que me aconchega deixo-me ir à deriva, guiado apenas pelos ventos de paixão…. )

…pelo vento gritante de um nó cego que faz nascer o âmago da tempestade e me inebria numa paz que me leva no recordar das ondas frias, ritmadas numa dança singela das almas que se unem em perfeita harmonia entre a areia, as ondas do mar, os cascos dos barcos, a lama, as algas, as tempestades e a calma Gritante de um Eco sonante de Paixão!!

:)

João C. Santos disse...

só a questão temporal me delicia.

só mergulha quem perde o medo.

Estás pronto, o farol seria um bem, digo, nunca gostei de caminhos escuros.

Som do Silêncio disse...

Olá Moon T

Saio em silêncio...mas tu sabes que te li, que adorei, e que voltarei a ler...
Tens esse efeito! O querer mais e mais!

Beijo terno

ivone disse...

são assim as ondas de paixão sim...
intensas mas efémeras.



ps: e o coltrane acompanha bem claro

Also...

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