O cheiro do porco pendurado no meio da sala é intenso. Passa por baixo da porta e entra pelo quarto, agressivo. As gotas de sangue, que vão caindo no alguidar meio cheio bem por baixo do porco, rasgam o silêncio da noite.
Durante o dia era festa, aquelas festas das aldeias, onde se junta toda a gente e abunda a comida, o vinho, a doçaria e a água-pé. Festas de saudade e risos, que tanta vez sobe o grau à cabeça e se lava a roupa suja de décadas. 
O alguidar vai enchendo gota a gota com o sangue que se esvai do porco preso ao tecto, de cabeça para baixo à moda do enforcado. Misturam-se os cheiros; a fétida morte, o suor e os hálitos que se embriagam pelas horas, o perfume e colónia barata que se apagam da pele com o fumo dos grelhados no carvão e a gordura das sardinhas. O vinho entornado ensopa na toalha e tinge a mesa de carmino. E as gargalhadas embevecidas aumentam, os olhos vão ficando amarelados e os corpos cansados. As crianças encostam-se num qualquer canto, imundas, suadas de inocência, e adormecem. Os queixos dos velhos já descaem pelo peito, de cabeças tombadas, sentados nos sofás com as bengalas encostadas às pernas. Os outros perdem-se na noite, nas memórias de noites semelhantes que passaram quando eram as crianças que corriam. Memórias de outras festas quando eram verdadeiras e a vida permitia. -Quando não havia mágoas e o sangue era outro.
Encheu o alguidar, secou o porco pendurado. As barrigas estão cheias. Está tudo pronto para acabar a festa.
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