sábado, 26 de junho de 2010

Perdoar é divino

A.Nova que me desafiou, à espera de um sentido que se perdeu por entre minutos soporíferos.   




Perdoar é divino,
Dizem.

Desafia perdoar o que não há.
Desafia o que não tem perdão.
O desafio é perder.

Está velho.
Velho e cansado.
Já não tem sangue
Agora, em vez de sangue
São memórias que lhe correm nas veias
Que se arredam das cicatrizes fundas
Que as entorpecem.
Memórias a preto e branco
De luas diurnas.
Os cabelos branqueiam a cada solavanco do ponteiro do relógio que finge já não ver.
Firmam-se-lhe os vincos na face
E a flacidez na pele e aqueles papos nos olhos
Está velho,
Velho
Demais para perdoar.

Depois da noite se lhe abater nos olhos
E as velas do bolo se derreterem como cobertura de açúcar barato
Sem chamas, sem sopros.
Depois de os ossos deixarem de bramir,
Depois talvez.
Depois de sentir,
Talvez,
Mas agora não.

-Perdoar é divino,
Dizem.
E não será pois por um qualquer desafio que existe ou passa a existir
Que apaga ou será
O perdão.
O Falso.
O Grosseiro.
O pérfido perdão.
E não será pois pelos amores em segunda mão,
Ou pelos abraços fechados, sorrisos solitários
Nem pelos beijos corruptos,
Nem gritos nem choros ou urros…
Nem pelos pais ou filhos, sem família nem avós
Nem mães, nem irmãos,
Sem mãos, sem dó e sem voz
Não será por nada nem ninguém
Que haverá o perdão.
Não será pelas vozes ásperas
Vestidas de falas mansas
Carregadas do veneno
Que lhe dá asco
Não!
Não será pois pelo passado em que o abandonou ele
A si primeiro que todos,
Que tudo
Por uma cave,
Por uma cama feita de lixo
e por um cobertor gasto
onde se enrolou como um bicho.
-Não!
A porta que se fechou ecoou pela escadaria
Ecoou o desprezo e a solidão
Ecoou a luz,
ao fundo…no sótão.
Ecoou sozinho o peso perdido do mundo…
Perdoar?
Perdão?
Não.

-Perdoar é divino.

Está velho
E apoia agora sobre o cajado toda uma vida
Todo um pesar de uma vida.
E sofre toda uma vida.
É senhor da sua casa.
Dizem que perdoar é divino
Mas nem deus nem o diabo lá entram
A casa é sua.
É senhor
Está velho.
Perdoar?
Não.
Está velho demais para perdoar.





domingo, 20 de junho de 2010

Tradição

O cheiro do porco pendurado no meio da sala é intenso. Passa por baixo da porta e entra pelo quarto, agressivo. As gotas de sangue, que vão caindo no alguidar meio cheio bem por baixo do porco, rasgam o silêncio da noite.
Durante o dia era festa, aquelas festas das aldeias, onde se junta toda a gente e abunda a comida, o vinho, a doçaria e a água-pé. Festas de saudade e risos, que tanta vez sobe o grau à cabeça e se lava a roupa suja de décadas.
Os velhos encharcam-se pela tarde fora e juntam-se todos na mesa pequena a um canto, a jogar a sueca, matreiros. -E que não chateiem. Os pais juntam-se à sombra das uvas que se enrolam nos arames suspensos do pátio e relembram o tempo em que eram filhos. Os tempos da escola e as brincadeiras, lembram-se uns aos outros que eram filhos e que tudo era diferente. E os filhos, muitos, sem sequer se conhecerem, brincam e correm às gargalhadas por entre as pernas dos pais. Caem e levantam-se sozinhos como nunca, com as bocas cheias de doce e as mãos cheias de terra. E os joelhos em sangue.
-Sangue.
O alguidar vai enchendo gota a gota com o sangue que se esvai do porco preso ao tecto, de cabeça para baixo à moda do enforcado. Misturam-se os cheiros; a fétida morte, o suor e os hálitos que se embriagam pelas horas, o perfume e colónia barata que se apagam da pele com o fumo dos grelhados no carvão e a gordura das sardinhas. O vinho entornado ensopa na toalha e tinge a mesa de carmino. E as gargalhadas embevecidas aumentam, os olhos vão ficando amarelados e os corpos cansados. As crianças encostam-se num qualquer canto, imundas, suadas de inocência, e adormecem. Os queixos dos velhos já descaem pelo peito, de cabeças tombadas, sentados nos sofás com as bengalas encostadas às pernas. Os outros perdem-se na noite, nas memórias de noites semelhantes que passaram quando eram as crianças que corriam. Memórias de outras festas quando eram verdadeiras e a vida permitia. -Quando não havia mágoas e o sangue era outro.
Encheu o alguidar, secou o porco pendurado. As barrigas estão cheias. Está tudo pronto para acabar a festa.

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