O felino passeava pelos quartos à noite. No escuro, esgueirava-se pelas portas entreabertas e espreitava a ausência dos corpos pelas esquinas. Via o saracotear das sombras ao choro do espanta espíritos que pintava o silêncio.
Pela janela avistou os navios atracados, presos ao luar. Inertes, como estátuas de pedra e cal numa qualquer praça vazia de tudo. Como um vasto desértico istmo, que separa a vista do sonho. Sem horizonte. Pensava como seria para lá do vidro que o prendia.
Abriu-se a porta que nunca esteve fechada. A tépida brisa deslizou pelos mosaicos, rebolou-se pelas paredes sem cor e afagou-lhe o sedoso pêlo prateado. Soltou um ronronar mudo ao sentir aquele cobertor de carícias. Lambeu-se e provou aquela melosa oressa que lhe adoçou a língua e lhe aqueceu a garganta. Espreguiçou-se em deleite, e seguiu.
Vagueou pelas ruas sem destino. A humidade pintava as paredes dos edifícios e as vitrinas embaciadas tinham começado a suar. As gotas que escorriam descobrindo os manequins despidos em poses naturais que espreitavam para lá do vidro sem qualquer expressão.
Chegou ao porto. Aquela necrópole de correntes ferrugentas mergulhadas no mar morto, negro. O mar não cantava. Nada mexia. Não havia ondas. Os navios choravam vermelho e em vez de serem gaivotas, nos mastros pousavam corvos. E a lua começava a fugir, mergulhando no mar vazio. Um sol alaranjado espreitava por entre pára-raios que arranhavam os céus. O véu de minúsculas gotículas começava a pousar na calçada enegrecida. O que se escondia nas sombras de prata revelava a panóplia de cores que acordava aos poucos. A cidade estava a acordar. Nasciam vapores das chaminés e das grelhas no chão. O som dos saltos altos a bater no chão multiplicava. Passos lentos e rápidos. Sapatos e mais sapatos. E pernas de um lado para o outro. Uma mistura de perfume barato, suor, café e mais uma dezena de odores que se misturavam no fumo dos escapes. Do nada apareceram o rugir dos motores, as buzinas, os gritos. Barulho.
O coração batia mais rápido que nunca. Tudo mexia. Tudo passava e gritava. Debaixo de um contentor que fedia a comida podre e pingava pelo rebordo um molho esverdeado imperceptível e mucoso, o gato encostava-se ao canto mais afastado das sapatadas violentas no passeio. Escondido, o seu corpo tremia. A cada piscadela, vertia uma lágrima dos olhos. Um e outro pêlo soltava-se e desaparecia pela rua a flutuar. Fechou os olhos e lembrou-se de como era estar na sua poltrona almofadada, na sala, e passear pelo silêncio de casa, roçar-se pelas esquinas das paredes e, sorrateiramente, enfiar-se por baixo dos lençóis e deitar-se aos pés da cama. Segurou-se a essa imagem e esperou.
Quando caiu de novo a noite, e assim que os sapatos se afastavam e os passos acalmavam. Quando os motores e as buzinas se calavam. As vozes iam sumindo, as portas fechando e os manequins eram despedidos. Quando a cidade dormia. Espreitou por entre as pequenas rodas do contentor e viu a rua vazia de novo. Viu o cobertor de gotas a pousar suavemente pelas ruelas e o porto morrer de novo. Ouviu um alarme ao longe a bater pelas janelas fechadas. Saiu debaixo do contentor e sem ver mais nada, correu. Os olhos abertos como faróis, dentes cerrados e as unhas a rasgar o alcatrão. Furou a brisa sem meiguice e correu em busca daquela porta entreaberta. Pelo silêncio do breu ouviu um choro sumido, um timbre familiar, e seguiu-o sem hesitar. Foi dar a uma porta escancarada onde o esperava, do outro lado, o meigo abraço do sabor a casa. Casa. Lar.
Depois do terno abraço familiar, depois de o tremor parar, mas antes de tudo mais, fechou a porta, aquela que nunca fechava. Fechou-a.
Regalou-se com o afago no pêlo e os dedos no pescoço. Deliciou-se com as festas por trás das orelhas e depois de uma lavagem minuciosa e uma bela espreguiçadela, foi-se esconder por baixo dos lençóis aos pés da cama à espera que os corpos se deitassem.
Entendeu que o vidro da janela que dava para o porto não o prendia, mas protegia, e por cada vez que via aquela porta entreaberta, passou a fechá-la.
Moon_T
(imagens pessoais)