sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Acorda hoje
Acorda hoje, disse o velho aos pés da cama onde dormia. Os olhos ainda mal conseguiam abrir com a película peganhenta a puxar as pálpebras para baixo. O hálito matutino fugia pelos lábios e entrava pelas narinas agarrando-se aos pelos nasais sem querer largar. Acorda hoje já disse, repetiu. Deixa-me estar, ouviu-se num suspiro. Deixa-me dormir, afundou-se o resmungo entre o edredão e o colchão. Acorda hoje, num grito, deixa o ontem no ontem e acorda hoje para a vida! A tua vida! E o barulho dos carros lá em baixo na rua aumentou. Os passos das pessoas na rua ficavam mais altos. E até o cantar dos pássaros, que pensava não haver, parecia apitos de um comboio a vapor num túnel de montanha. Não deixes que o passado te atropele. Acorda!
Foi então, quando o barulho se tornava demasiado insuportável, que os lençóis escorregaram para o chão, a cabeça zunia com o tilintar das pedras de gelo da noite anterior. Já não havia fumo no quarto, apenas cigarros mortos, empilhados num cinzeiro e afundados na cinza de dias. A luz que espreitava pelos estores era como laminas a cortar a pele. A voz do velho aos pés da cama, seca, rouca e vivida, repetia, acorda para quem és. Para quem te tornaste. E aceita esta manhã. Hoje. Bem sabes que pagas hoje pela noite de ontem, como todos, como sempre. E a cabeça pesada bem o confirmava, mesmo não querendo acordar sabia melhor que isso. Agora só tens de acordar e viver, falou a sorrir. Os pés descalços resvalaram para o chão como que com vida própria e ergueu-se o tronco com o cabelo desgrenhado e sujo no topo. Nem um bocejo. Nada… Apenas dormência e um frio que subia pelo corpo erecto. O eco dos calcanhares nus no solo ecoava pelas paredes queimadas e trepava ao tecto apenas para cair que nem avalanches de toneladas na cabeça que faziam estremecer o corpo todo. Os olhos, aos poucos, pareciam secar e as pequenas lágrimas que escorriam involuntariamente pelo canto dos olhos pararam sem explicação a meio da face. E gelaram.
Ao chegar ao lavatório, rodou a torneira no máximo e apenas um fio de água escorria direito e fino, quase sem som. A voz do velho aos pés da cama repetiu mais uma vez ao longe, acorda! Estou cá como todos os dias amanhecem, como a noite brilha. Estás cá tu também. Mas acorda e verás ao espelho a cara que escolheres ser tua. Acorda hoje e hoje ao deitar elege aquela com que queres acordar. E enquanto levantava os olhos para o espelho, lentamente, via a barriga, subiam ao peito, ao pescoço, aos ossos do pescoço e aos ombros ossudos e os olhos subiam. Vê bem quem és. Sem medos. Sem enganos e desenganos. Amanhã, se preciso fôr, acordam-te outra vez, disse pela última vez. Desviou os olhos do espelho rapidamente para ver o rosto do velho aos pés da cama, mas quando o olhar lá chegou já a cama estava vazia, desfeita com os lençóis a cobrirem o chão. Revistou o quarto com o olhar mas estava vazio, como se apenas aquele odor matutino fosse a única presença daquela manhã. Então sozinho, voltou-se para o espelho.
Moon_T
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Até já...
Várias imagens e histórias têm vindo a aparecer-me na mente, sorrateiras. Como relâmpagos de memórias sem trovões, memórias que não são minhas. Memórias minhas mas não de mim:
As mãos dadas de Outono; ideais ideias e conversas; a brisa de Leste; o cheiro de natal; os sonhos; os beijos; o cheiro de velho; os canalhas e patifes; os livros; o sotaque; as musicas; as fotos; o olhar da miúda do carro da frente, de soslaio… Muita coisa. Tanta coisa...
De momento tenho-as deixado fugir ao lado dos dias. Tiro polaroids que guardo como negativos numa bolsa de pele escura e velha. Fecho-as bem guardadas para em breve, as tentar revelar.
Moon_T
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